quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Crítica: Aquarius (2016)

Uma das produções nacionais mais comentadas dos últimos anos, "Aquarius", que esteve presente no último Festival de Cannes e era um dos favoritos ao prêmio principal, é um retrato honesto de nosso país, que pode até não nos representar mais no Oscar, mas continua representando a essência de ser brasileiro. É um ode à nossa cultura, à nossa intensidade. É um ode às lembranças que nos compõe.

por Fernando Labanca

Pode até ser um jeito covarde de começar uma crítica, mas já digo de antemão: não há palavras que possam descrever a grandeza deste filme. Minhas expectativas eram altas diante dos bons comentários que havia lido, no entanto, ao seu término, senti algo tão forte que não cabia em mim. Uma mistura de orgulho, por poder ver uma obra que resgata o que há de melhor no cinema nacional, com puro prazer. Prazer de estar ali, assistindo aquilo, vivenciando e sentindo todo sentimento que o filme expõe. E são muitos. Me encontrei trêmulo, sem reação, admirado não só pelo belíssimo e poderoso final, mas por toda a poesia e significados de "Aquarius".  Dirigido por Kleber Mendonça Filho, que já havia chamado a atenção em "O Som ao Redor" (2012), o longa ainda traz de volta uma revigorante Sonia Braga, que entrega alma à sua protagonista e acaba por fazer da sessão um grande e espetacular evento.


O filme nos apresenta Clara (Sonia Braga), uma mulher forte e independente, viúva e mãe de três filhos adultos que já não mais dividem a casa com ela. Logo, ela mora sozinha em um antigo apartamento no Edifício Aquarius, em Recife. Bem localizado, é lá que Clara viveu grande parte de sua vida e onde guarda suas melhores recordações. No entanto, uma construtora, liderada pelo jovem e empreendedor Diego (Humberto Carrão), tem planos de levantar um novo prédio no local e apesar de já ter conseguido a aprovação de todos os apartamentos, falta o dela, que rejeita qualquer tipo de negociação e vive isolada naquilo que alguns chamam de "prédio fantasma". É então que Clara passa a ser pressionada para que mude de ideia, sofrendo todo tipo de ameaça e assédio.

Mais do que construir uma personagem marcante, Sonia Braga faz de Clara uma pessoa crível e apaixonante. Extremamente forte sua protagonista. Tudo o que ela viveu, sentiu, tudo o que ela diz e da forma como ela diz. Existe verdade em cada gesto, cada expressão, em cada palavra que pronuncia. Justamente por isso é tão real e tão tocante sua presença, pois acreditamos nela e o bom roteiro nos faz estar ali, ao seu lado, sentindo sua dor, vibrando por cada diálogo, torcendo por sua vitória. Sua postura tão elegante nos fascina, daquela mulher que fica "puta" mas não se estressa. Da mulher que teve uma noite de merda, não leva desaforo para casa e como única solução resolve botar um som e dançar sozinha. Da mulher que contempla um bom disco de vinil mas não ignora a facilidade de um mp3. Da mulher que sacrificou momentos de sua vida para escrever sobre tudo aquilo que não vemos, que encontra em objetos toda uma história a ser contada, uma razão a ser apreciada. Da mulher que perdeu, lutou e continua caminhando, mesmo quando todos estão decididos a lhe tirar aquilo que ela tanto guarda, tanto preserva. E todo essa carga que ela carrega não existiria sem a presença irretocável de Sonia Braga, que renasce na tela com um poder imensurável.

O Edifício Aquarius funciona como um personagem aqui. Ele também tem algo a dizer e também possui uma história a ser contada. Sobreviveu ao tempo e tem como qualidade não só o registro do passado como o reflexo de um presente que o rejeita. Neste sentido, é brilhante os primeiros instantes do filme, quando retorna aos anos oitenta e consegue, em poucos minutos, construir toda uma ideia. Em uma simples festa de família, descobrimos tudo o que aquilo significa à Clara, descobrimos as histórias que aquelas paredes escodem e que antecedem a própria memória da protagonista. Conhecemos os elos e vemos naqueles momentos tão singelos quase que uma fotografia em movimento. Sim, aquelas que nossos pais guardam naqueles álbuns enormes e que parecem fazer parte uma lembrança universal. Quando somos lançados ao presente, olhamos para a protagonista e compreendemos o que ela preserva ali, logo seus discursos se tornam belos e sua batalha por manter aquele antigo lugar vivo é inspirador.


O roteiro é primoroso. Além de toda a trama fluir de uma forma deliciosa de assistir e contemplar e de termos aqui personagens muito bem escritos e inseridos dentro da história, "Aquarius" fascina por cada detalhe, por indicar em cada instante um novo significado, uma nova importância. Nada ali vem de graça, tudo tem uma razão para existir e é incrível quando nos damos conta disso. A premissa da construtora querer aquele espaço já é, por si só, extremamente interessante, mas tudo o que vem junto com ela, todos os desdobramentos e todas as reflexões e críticas feitas tornam seu texto ainda mais impecável. Existe uma admirável evolução na trama, onde, gradualmente, vamos sendo sugados para dentro dela e quando menos esperamos estamos ali, grudados na poltrona, aflitos por todo o seu desenvolver e de certa forma, tensos sobre como tudo aquilo pode acabar. Os diálogos também chamam a atenção, onde cada discurso bem elaborado de seus personagens, além de serem incrivelmente realistas, chocam por serem tão crus, sejam as dolorosas conversas familiares, seja dentro do potente embate entre Clara e seu inimigo declarado da construtora. Vale destacar a excelente direção de Kleber Mendonça Filho, que constrói belas sequências ao lado de sua competente produção.



"Aquarius" revela o Brasil como é e acredito que poucos filmes tenham conseguido esta proeza nos últimos anos. É um representante fiel ao que somos feitos. Não evita ser crítico quando precisa e em nenhum momento ignora a beleza, o sentimento, a poesia e a nostalgia que nos segue. Temos um país com uma cultura musical tão forte e me espanta como quase não temos obras que mostrem isso. logo, finalmente uma veio para reverenciar a verdadeira grandeza de nossas canções, as inserindo, sempre como muito cuidado, em alguns momentos importantes. Não deixa de ser, também, um filme doce, que encanta por toda sua sensibilidade, que revela até mesmo os instantes mais corriqueiros na vida de seus personagens com um ar de apreciação. Muito delicado este encanto do longa com a memória, das histórias que objetos trazem, das lembranças que são guardadas com afeto. Seja vintage ou velho, o passado tem sempre muito a que nos dizer. Ao seu fim, queria agradecer a todos os envolvidos neste fantástica produção, que é tão cheia de ideias e pensamentos, tão cheia de honestidade. Que prazer poder ver "Aquarius". Que grande prazer! Espetacular, memorável, temos aqui uma nova obra-prima do cinema nacional.

NOTA: 10






País de origem: Brasil
Duração: 142 minutos
Distribuidor: Vitrine Filmes
Diretor: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Humberto Carrão, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Pedro Queiroz, Allan Souza Lima

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