quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Crítica: Que Horas Ela Volta? (2015)

No começo deste ano, algo surpreendente aconteceu: um longa-metragem brasileiro venceu um importante prêmio de atuação no Festival de Sundance, consagrando, assim, as atrizes Regina Casé e Camila Márdila, além de ser premiado no conceituado Festival de Berlim. Tal repercussão internacional elevou a expectativa em torno de "Que Horas Ela Volta?". A verdade é que, mais do que superar aquilo que prometia, a obra é tão fantástica que passa a ser, facilmente, um marco no nosso cinema atual.

por Fernando Labanca

Regina Casé interpreta Val, que deixou sua pequena filha em Pernambuco para trabalhar como empregada doméstica em uma mansão de São Paulo. Além de cuidar da casa, ela acaba cuidando de Fabinho, o único filho dos patrões Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli). Morando integralmente no local, Val é como se fizesse parte da família e acredita ser tratada como tal, até que, treze anos depois, recebe uma chamada inesperada de sua filha Jéssica (Camila Márdila), que diz estar indo para São Paulo devido a uma prova de vestibular. Os patrões a recebem de braços abertos até o momento em que ela se mostra contra as "regras" de convivência ali instauradas, e quase como num ato de rebeldia, começa a questionar o que faz dos donos da casa tão superiores à sua mãe.


Acredito que o motivo de "Que Horas Ela Volta?" funcionar tão bem é porque ele tem o trunfo de dialogar com todos os tipos de público e principalmente, com todas as classes sociais. É o tipo de roteiro que aposta na memória daquele que assiste e no afeto que o mesmo tem sobre o tema tratado. São muitos aqueles que foram criados por babás, são muitas mulheres que trabalharam ou trabalham como empregadas domésticas e existem muitas também, que recebem o serviço de alguém dentro de casa. É uma relação antiga e que acontece até hoje, e mais do que isso, é uma realidade brasileira que precisa ser discutida, pois como o próprio filme nos traz, há muito o que se pensar, muito o que ser questionado sobre esta suposta fraternidade. E através do humor e de um texto provocativo, vemos na tela, a desconstrução de conceitos como o da meritocracia e duras críticas sobre essas diferenças sociais tão presentes no nosso dia-a-dia, e que nos toca e nos afeta justamente porque nós mesmos aceitamos aquilo que é injusto e imoral como normal, como parte da sociedade e são nesses instantes que levamos um verdadeiro soco na cara. Existem tantas Vals neste Brasil, daquela que precisar abandonar aquilo que ama para encontrar uma vida melhor, que deixa a própria filha para criar o filho de alguém, que "faz parte da família" mas dorme em um quarto minúsculo e não come na mesma mesa que a dos patrões. O roteiro de Anna Muylaert é brilhante neste aspecto, de conseguir, através de situações corriqueiras, dizer muito, onde tudo parece falar algo, expressar algo, como se tudo tivesse um porquê de estar ali, nada surge ao acaso e tudo cria, facilmente, uma forte identificação com o público.

E são dessas situações corriqueiras que nos sentimos tão próximos a obra. Regina Casé chegou a declarar que não precisou de pesquisa para compor sua personagem, bastou abrir seu coração, e isso é muito nítido na tela. Seu sotaque, suas expressões e seus diálogos prezam pela naturalidade e é extremamente delicioso vê-la tão entregue e que, aliás, até esquecemos que é uma atriz interpretando. Acreditamos na Val, abrimos um sorriso fácil a cada vez que ela abre a boca e sentimos o coração apertado por cada percalço que precisa enfrentar. A Val existe. Confesso que vi minha mãe ali, de origem humilde, ela olhava atrás da minha orelha e fazia questão de verificar se ainda estava limpa e até hoje implica com os cachorros como se fossem gente e se encanta com um jogo de cozinha "moderno". O roteiro brinca com esses "símbolos", simples, mas que fizeram parte de nossas vidas. E como não se emocionar pela felicidade da protagonista diante das conquistas de sua filha? Ou na fantástica sequência da piscina ao seu final? Essa cena me destruiu e ela sintetiza bem o poder estrondoso desta obra, de tocar profundamente aquele que assiste sem fazer muito, apenas entregando a vida como ela é e deixando com que a emoção tome conta naturalmente da trama, sem exageros. Aqui, o humor e drama se fundem de uma forma surpreendente, logo que é possível chorar e rir em uma única sequência. Sim, ri e chorei, e não foi pouco.

"Que Horas Ela Volta?" é um daqueles filmes nacionais obrigatórios. Fiquei feliz de ver um produto desta qualidade, que só aumentou o orgulho que tenho do cinema do nosso país. Vale por nos lembrar, também, da grande atriz que é Regina Casé, foi lindo demais o que ela fez neste filme e me faltam palavras para descrever a grandiosidade do trabalho dela. Não poderia deixar de citar o bom desempenho de todo o elenco, como da jovem Camila Márdila e de Karine Teles, além, claro, do sempre competente (e genial) Lourenço Mutarelli. Contando ainda com a irretocável direção de Anna Muylaert, o longa entra fácil na lista nos melhores nacionais que tivemos nos últimos anos. É inteligente, crítico, divertido, doce e extremamente encantador. Uma obra a ser lembrada. Recomendo!

NOTA: 10


OBS: "Que Horas Ela Volta?" foi selecionado pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na categoria Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2016.





País de origem: Brasil
Duração: 114 minutos
Distribuidor: Pandora Filmes
Diretor: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Karine Teles, Camila Márdila, Lourenço Mutarelli, Michel Joelsas

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