terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Crítica: Em Chamas

Sobre mulheres e celeiros.

por Fernando Labanca

Representante da Coréia do Sul no Oscar 2019 e vencedor do prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes, "Em Chamas" entrega uma experiência cinematográfica rara, que deixará marcas em você um bom tempo depois de acabar. Confesso que por várias vezes me via perdido, sem entender a intenção da obra e isso acontece porque o roteiro segue uma linha de raciocínio distante do convencional. São pontas abertas e diálogos soltos que impregnam em nossa mente e nos deixam ali, extasiados por cada instante e curiosos sobre o sentido de tudo aquilo. Esse mistério que o envolve é o que o torna tão fascinante, porque não é óbvio e porque nos leva para lugares que nunca visitamos antes.

O filme reserva um longo tempo apenas para conhecermos seus personagens e o cenário em que vivem. Temos como protagonista Lee Jong-soo (Ah-In Yoo), um garoto introspectivo que, certo dia, enquanto caminhava na rua, reencontra Shin Haemi (Jong-seo Jeon), uma antiga amiga que morava na mesma região e que não evita em demonstrar interesse nele. Após um rápido envolvimento, ela viaja para África, o deixando solitário à espera de seu retorno. No entanto, quando Haemi volta, trás ao seu lado um novo amigo: Ben (Steven Yeun), um jovem misterioso que conheceu fora do país. A partir deste momento, os três se tornam inseparáveis, mesmo que Lee duvide do caráter do estranho novo amigo, ainda mais quando ele revela um hobby bem peculiar e cruel.


Uma palavra que define bem a obra é "sugestão". Nada é muito claro aqui e tudo gira em torno de sugestões. Seja os sentimentos que cada personagem guarda sobre o outro, seja pelos crimes que possivelmente aconteceram. O roteiro nos lança à uma série de teorias e sem nos darmos conta, estamos tão paranoicos quanto Lee, a procura de respostas que nunca chegam, obcecados por essas verdades jamais reveladas. Procuramos em cada diálogo e em cada detalhe oferecido evidências de um jogo perverso proposto pelo filme. Em certo momento, Haemi faz uma brincadeira sem razão aparente, instigando a imaginação de seu parceiro. Ela finge comer uma fruta - em uma espécie de mímica - à sua frente e pede para que ele esqueça que aquilo não existe. Toda a trama parece ser trabalhada em cima desta "ilusão" e dessa ausência de fatos que ludibriam o protagonista, que o faz crer e, consequentemente, nos faz crer não mais naquilo que vemos, mas nas prováveis soluções que criamos em nossa própria mente.

Há uma atmosfera incrivelmente bela construída aqui. Mesmo quando o filme assume um tom perturbador, somos constantemente atraídos por seu visual e por seus mistérios. A trilha sonora é marcante e a fotografia naturalista entrega sequências tão fantásticas que dificilmente sairão da cabeça, como quando Haemi dança nua no campo. Essa sequência é marcante não somente por sua estética, mas principalmente pela entrega da atriz, que transmite muita coisa em seu olhar e em seus movimentos. A personagem é forte e, também, repleta de incógnitas. Seu desaparecimento repentino, a ausência da mãe do protagonista e a desmotivação existente naquelas que trabalham nas ruas, tudo naquele cenário indica uma certa frustração das mulheres, que estão em busca de uma liberdade pessoal e de serem ouvidas nessa sociedade que não as vê, que as descartam com a mesma facilidade que queimam celeiros diante de sua improdutividade. Porque é fácil cortar o que não faz mais falta. São possíveis leituras deste roteiro que não pretende dar respostas ou encontrar um sentido em cada ato, mas oferece todos os argumentos para ativar nossa imaginação. No entanto, há um fato: nada está ali por acaso. Cada pequeno detalhe está nos dizendo algo, o que vamos fazer com cada informação recebida, cabe somente a nós. O brilhantismo do filme está justamente nisso, nessa liberdade que nos dá de interpretação.

"Em Chamas" tem potencial de prender a atenção mesmo sem uma reviravolta evidente. Nos faz questionar o tempo todo sobre o que, de fato, está acontecendo e qual história vamos contar para nós mesmos quando acabar. Repleto de simbolismos, o diretor Lee Chang-dong entrega um produto fascinante, tenso, vibrante e que nos deixa, constantemente, apreensivos, com uma estranha sensação de vulnerabilidade, de que algo ruim irá acontecer a qualquer instante. Há na tela, ainda, um tom melancólico que revela esta angústia e solidão vivenciada por seus personagens. Neste sentido, o título é bastante conveniente ao nos remeter a palavra fogo, o elemento que, ao mesmo tempo em que transmite vida, também mata. No fim, percebemos que estamos diante de um thriller arrebatador, marcante e de uma das experiências mais fantásticas que o cinema ofereceu este ano. 

NOTA: 9



País de origem: Coréia do Sul
Título original: Buh-Ning
Ano: 2018
Duração: 128 minutos
Distribuidor: Pandora Filmes
Diretor: Lee Chang-dong
Roteiro: Jungmi Oh, Lee Chang-dong
Elenco: Ah-In Yoo, Jong-seo Jeon, Steven Yeun

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