quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Crítica: A Vida Invisível


Se apagando, deixando de ser. 


por Fernando Labanca

O cinema nacional vive uma excelente época, digna de ser valorizada. Foi com grande orgulho que "A Vida Invisível" venceu, no último Festival de Cannes, o principal prêmio na Mostra Um Certo Olhar. Não demorou muito até ser colocado como representante do Brasil na corrida para ser indicado a Melhor Filme Estrangeiro no Oscar. Foi uma escolha certeira não apenas porque é muito bom, mas também porque representa o que há de mais rico e mais esplendoroso em nosso cinema. Dirigido pelo talentosíssimo Karim Aïnouz, temos aqui uma produção grande, luxuosa e que espanta pela enorme qualidade. É lindo em muitos aspectos e nos faz acreditar no poder da produção do nosso país, que alcança aqui um nível poucas vezes alcançado. 

Não é de hoje essa riqueza apresentada pelo cearense Karim Aïnouz. Responsável por obras belissimas como "O Céu de Suely" e "Praia do Futuro", ele retorna em mais um produto potente, poético, provando ser um dos maiores e mais notáveis cineastas de nosso tempo. O que retorna aqui não é apenas a sensibilidade com que retrata seus temas ou a poesia inigualável de seus roteiros. Há um tema em comum em seus filmes. A solidão, o abandono, a fuga de seus heróis que desaparecem na necessidade de se reinventarem. Em "A Vida Invisível", conhecemos duas irmãs, Guida (Julia Stockler) e Eurídice Gusmão (Carol Duarte). Elas vivem sob o forte regime patriarcal no Brasil da década de 40. São mulheres que vivem sem voz, sem direito a ter desejos. E nesta necessidade de desenhar a própria história ou sentir o gosto da liberdade, que Guida foge do país para viver um grande amor. Quem fica é Eurídice e desolada por este abandono, continua a viver como muitas outras mulheres, casando e deixando seus sonhos de lado. Porém, quando a filha pródiga retorna, os pais impedem este reencontro delas e as fazem sofrer, durante anos, por esta distância, por este laço rompido e que tanto as completava.


É uma obra rara, que poucas vezes temos o prazer de ver na tela grande. É preciso ressaltar isso. Não é sempre que nosso cinema alcança este nível de brilhantismo. As locações, figurinos, fotografia e a forma deslumbrante e detalhista com que retrata as diversas épocas em que a história se passa. É um belo retrato de nosso país, visto por um olhar caprichoso e delicado de Aïnouz e sua equipe. É o mais perto de Almodóvar que a produção nacional já conquistou. O excesso de cores, estampas, a forma dramática com que guia sua trama e a sensibilidade com que fala sobre o universo feminino. A história é fascinante e o roteiro engrandece cada ato. É interessante como nem todo detalhe de sua evolução está em cena, dando saltos temporais sem a necessidade de se revelar por completo. Compreendemos suas passagens de tempo, que surgem sem inserção de letreiros ou diálogos expositivos. Ver esses anos passando diante de nossos olhos é o que torna "A Vida Invisível" tão doloroso. Talvez o tempo não cure tudo. Algumas feridas talvez estejam sempre lá, de alguma forma, nos moldando, nos levando para outra direção. É comovente demais esta jornada traçada por Eurídice e Guida. A jornada dos rompimentos, da separação. Delas construindo suas próprias vidas e se apagando dentro de suas vozes silenciadas, vivendo em uma sociedade que as oprimem e onde uma não tem mais a outra. Não há mais amparo e nem o amor que ambas precisam. 

A primeira cena do filme é bem emblemática e, assim como toda sua construção, poética. Eurídice e Guida se perdem em uma pequena reserva florestal, uma chama pela outra mas elas não se encontram. A obra toda é marcada por este desencontro e por tudo o que teria sido diferente caso não acontecesse. É lindo esta decisão do roteiro em narrar diversos acontecimentos pela voz de Guida, na voz daquela que partiu e escreveu cartas para sua irmã. Cartas nunca entregues. Desta forma que chegamos ao final e digo que foi o final mais belo que vi em muitos anos. Chorei e não foi pouco. O filme todo vai nos preparando para algo que nunca chega e quando os minutos finais se aproximam, se aproxima a dor também. Me senti sufocado, angustiado por toda aquela trajetória e pela forma destruidora e irretocável que se concluiu. Finalizo, elogiando o excelente trabalho de Carol Duarte e Julia Stockler, na entrega total das duas atrizes. E claro, Fernanda Montenegro. Parece uma homenagem dada a sua grande carreira. Sua aparição nos deixa imóveis, hipnotizados por cada fala. "A Vida Invisível" é um presente, emocionante ao extremo e um lembrete do quão longe a produção nacional consegue ir. Termino de vê-lo em lágrimas e com um prazer enorme de ver um filme tão bom. Sendo indicado ou não ao Oscar, foi uma das coisas mais lindas que o nosso cinema já produziu. 

NOTA: 10




País de origem: Brasil
Ano: 2019
Duração: 149 minutos
Distribuidor: Vitrine Filmes
Diretor: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser
Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregorio Duvivier, Fernanda Montenegro, Maria Manoella



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