terça-feira, 20 de maio de 2014

Crítica: Praia do Futuro (2014)

Lançado no último Festival de Berlim, no qual concorria ao Urso de Ouro, "Praia do Futuro" marca o retorno do diretor cearense Karin Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely) e conta com atuações marcantes de Wagner Moura e Jesuíta Barbosa. Uma produção caprichada, que cria na tela, cenas de uma beleza irreparável. Uma obra rara, que não se prende a um tema, mas que expõe de forma intensa, sensações.

por Fernando Labanca

Difícil escrever sobre este filme. Não é do tipo que tem uma história pronta e personagens de fácil compreensão. Acredito que assim como qualquer obra de arte, "Praia do Futuro" poderá significar coisas diferentes para outras pessoas, cada um verá algo, sentirá algo, não há uma única maneira de encará-lo e compreendê-lo, portanto, naturalmente, uns poderão amá-lo, outros, odiá-lo, consequência desta trama que é tão subjetiva, tão ampla, tão aberta. Escrevo aqui, o que vi, e só digo de antemão, fiquei extasiado.

Donato (Wagner Moura) é um salva-vidas na Praia do Futuro, em Fortaleza. Certo dia,  falha ao não conseguir salvar uma vítima de afogamento, porém acaba conhecendo o amigo desta mesma vitima, o alemão Konrad (Clemens Schick), com quem acaba se envolvendo. Até que Donato resolve morar ao lado dele em Berlim, abandonando seu trabalho e sua família. Anos depois, quando Ayrton (Jesuíta Barbosa), seu irmão mais novo, completa dezoito anos, resolve ir atrás dele, entender as razões por ele ter ido embora, entender o porquê aquela vida não o satisfazia.




"Conto do menino e digo que ele é meu irmão. 
Que ele sou eu num dia em que eu tiver coragem de aceitar 
o quanto que eu tenho medo das coisas.... 
Porque tem dois tipos de medo e de coragem, Speed... 
O meu é de quem finge que nada é perigoso. 
O seu é de quem sabe que tudo é perigoso nesse mar imenso."

A clássica canção "Heroes" de David Bowie foi de grande inspiração para "Praia do Futuro". A música que toca ao final e que muito remete a jornada deste herói, Donato. O filme, o tempo inteiro, brinca com esta alusão aos heróis, ao personagem Ayrton, amante da velocidade, que é chamado pelo irmão de "Speed Racer", enquanto ele enxerga, desde pequeno, Donato como sendo o "Aquaman" e Konrad, o "Motoqueiro Fantasma". E esta visão do homem como herói é o que destrói o protagonista, que não tem coragem, que foge por medo, que se esconde, enquanto seu pequeno irmão o vê como um ser poderoso aquático, ele mesmo se imagina se perdendo no mar, se afogando. "Praia do Futuro" é sobre, dentre tantas coisas, coragem, é sobre ser homem hoje em dia e ter a coragem de encarar seus medos, de não poder expor seus sentimentos, de ter que agir como herói, o protetor, que toma conta de tudo, é também preciso coragem para se esconder, é preciso coragem para ser quem é.

Dividido entre três capítulos: "O Abraço do Afogado", "Um Herói Partido ao Meio", "O Fantasma Que Falava Alemão", o filme ganha ritmo ao ter essas divisões, que se diferem bem uma da outra, ainda que partes da mesma história, me pareceu bem pertinente. A trama é bem aberta, deixa pontas soltas, os cortes dão saltos no tempo, e nem toda resolução é dita na tela, é um exercício constante de pensamento e reflexão, e alguns conflitos são resolvidos apenas com um olhar, há na verdade, pouquíssimos diálogos, muitas cenas são construídas por imagens, apenas. A grandeza do trabalho de Karim Aïnouz está nesta construção inovadora de cinema, encontra uma maneira nova de contar uma história, e sua direção é extremamente eficiente, entregando sequências belas que é difícil encontrar palavras para descrever, ele apenas coloca sua câmera e deixa que as imagens digam por si, e com sua emotiva trilha sonora e a fotografia, vemos momentos contemplativos, sequências tão bem orquestradas, tão bem construídas. Chega a ser hipnotizante alguns instantes, mesmo que simples, como a cena do aquário, da praia subterrânea, de Donato dançando intensamente, dos dois correndo pela estrada escura, é tudo fascinante, belo, impactante. Um trabalho de direção impecável. Há também uma estética bem pop no filme, desde as intervenções tipográficas, à escolha das canções, aos créditos finais com seu design moderno.


Wagner Moura surpreende. Não que houvesse alguma dúvida sobre seu talento, já desde muito tempo provou ser um grande ator, a questão que ele fez aquele papel que realmente ninguém esperava que ele fizesse e foi bom vê-lo se arriscando dessa forma, mesmo com sua carreira consolidada no cinema nacional. Donato é um personagem difícil e o ator se entregou de uma forma admirável. Clemens Schick se mostra bem mais a vontade em solo alemão, causa estranheza quando interpreta o estrangeiro na Praia do Futuro, prejudicado também pelo som, que pouco dá para entender o que ele diz. Jesuíta Barbosa é uma revelação, o filme alcança seu melhor momento quando o ator entra em cena. O encontro entre os dois irmãos é memorável, e a tensão e comoção que existe no olhar dos dois atores é a prova do quanto compreenderam seus personagens e quanto deram o melhor por eles. 

"Te escrevo para dizer que eu não morri, que eu só voltei pra casa. 
Aqui nessa cidade subaquática, tudo pra mim faz mais sentido. 
Eu não preciso me esconder no mar pra me sentir em paz, 
nem preciso mergulhar pra me sentir livre…"

"Praia do Futuro" também inova ao relatar esta relação homossexual, que apesar de surgir como empecilho na vida do protagonista, a trama em nenhum momento se prende a isso, não há um olhar de julgamento, nasce na tela como uma parte natural da história. O filme está mais interessado nesta jornada de auto aceitação de Donato e das coisas que ele deixou para trás para conseguir seguir em frente. Para alguns, o filme poderá até ser sobre nada, sobre cenas aleatórias e um roteiro que pouco diz, como já li alguns comentários como estes. As informações não vem fácil em "Praia do Futuro", suas ideias, sua trama, seus conflitos, é uma obra subjetiva, significará para cada um algo diferente. Mais do qualquer coisa, é um filme de sensações, onde as imagens e os sons causam impacto, tristeza, emoção, há muita alma em cada momento, muito sentimento, é muito humano ao relatar as fragilidades de seus personagens, é complexo, é profundo. É também um filme introspectivo, silencioso, intimista, melancólico, é delicado ao mesmo tempo em que é puro caos, é seco ao mesmo tempo em que é poético, fala de coragem através daqueles que sentem medo, fala de amor através daqueles que são brutos, fala de ira através daqueles que esperam por um abraço. Vi uma obra como poucas, vi um cinema nacional como quase nunca tive a oportunidade de ver e sentir. Um trabalho de arte, um filme a ser lembrado. 

NOTA: 9,5





País de origem: Alemanha / Brasil
Duração: 90 minutos
Distribuidor: California Filmes
Elenco: Wagner Moura, Jesuíta Barbosa, Clemens Schick
Diretor: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Felipe Bragança



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