segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Crítica: A Viagem (Cloud Atlas, 2012)

Quatro anos de desenvolvimento, dificuldades em ser concluído e dificuldades em conseguir apoio financeiro, logo que poucos acreditavam neste projeto. "A Viagem", que fora baseada no livro de David Mitchell de 2004, tem todos os elementos que o tornam uma obra impossível de se fazer, é então que com o comando dos famosos irmãos Wachowski, da trilogia "Matrix" e do cultuado diretor Tom Tykwer, que arriscam tudo e levam esta ideia adiante, tornam aquele impossível no possível e realizam uma das obras mais ambiciosas de nosso tempo.

por Fernando Labanca

Várias histórias, vidas diferentes em tempos diferentes. Passado, presente e futuro. Não adianta resumi-las aqui, como faço de costume em minhas resenhas, logo que elas não funcionam isoladamente, são histórias bem simples, algumas aliás, com personagens fortes, no entanto fazem parte de uma só composição e que funcionam quando visto o plano geral. "Tudo está conectado", a frase clichê é a premissa de todas elas, pode parecer básico, mas as tramas nem sempre se unem de forma óbvia, é preciso pensar para compreender. O que percebemos logo de início é que teremos um só grupo de atores, interpretando diversos personagens. Tom Hanks, Halle Berry, Doona Bae, Jim Sturgess, James D'Arcy, Ben Whishaw, Jim Broadbent e Hugo Weaving são os principais e são vistos em quase todas as histórias, no entanto, nem sempre são reconhecidos facilmente, é então que surge a maquiagem transformando estes atores de acordo com cada tempo.

"Cloud Atlas" é definitivamente bastante confuso, é muito fácil se perder nesta viagem, isso porque o roteiro não nos entrega uma obra redondinha, como geralmente é feito neste tipo de filme, que praticamente já virou um gênero a parte, aquele que conta diversas histórias ao mesmo tempo e que de alguma forma tudo se conecta. Além do fato de serem tempos diferentes, a ligação de uma trama para outra surge nos pequenos detalhes, nem sempre perceptíveis ao primeiro olhar. Porém, é apenas em seu final onde tudo faz realmente sentido, onde conseguimos finalizar este complexo quebra-cabeça. A história, por fim, gira em torno de um "legado", elementos do passado que são somados e alteram o futuro, e estas tramas contadas nada mais são que o nascimento deste legado e como pequenas ideias sobreviveram no tempo. Em certo momento do filme eles lançam a frase "Nossas vidas não são nossas. Estamos vinculados a outras, passadas e presentes. E de cada crime e de cada gesto generoso nasce nosso futuro". Acredito que esta frase sintetize bem a ideia de "A Viagem", onde um ato do futuro não nasceu ali, nasceu muito antes, onde uma escolha de alguém de outra época, um caminho alterado, um simples discurso improvisado, tudo leva a história a uma nova saída. "Cada encontro sugere uma nova direção possível."


Claro que com tantas ideias, o que o filme nos permite ao seu final é nossa própria interpretação. Não há como dizer exatamente sobre o que se trata. Uma das interpretações possíveis é a vida após a morte, onde a alma de um determinado personagem ressurge em outra época, levando consigo algumas ideias. "Cloud Atlas" nos revela não só a jornada destes pensamentos pelo tempo, mas toda a evolução da vida no planeta, onde essas almas vão se readaptando a cada geração, no entanto, cometendo os mesmos erros. É então que surge a ironia do roteiro ao retratar o último estágio da evolução como o mais primário de todos, revelando esta natureza destrutiva do ser humano. É interessante perceber também, que em cada passagem, encontramos personagens que de alguma forma deixam algo que no futuro fará diferença, mas que no momento de sua existência era feito apenas para salvar alguém, um puro gesto de amor ou de afeto. Pessoas que tentam fugir daquilo que um dia alguém estabeleceu como certo, seja do advogado salvando o escravo ou o velhinho se libertando do asilo. "Existe uma ordem natural neste mundo e aqueles que tentam abandoná-la não se dão bem."

Um ambicioso filme, que aposta em tudo, que em nenhum momento se permite ser pequeno, ordinário. É pretencioso, mas diferente de muitos filmes com esta característica, consegue nos oferecer uma obra completa capaz de preencher esta pretensão, de ser tão grande quanto pretende ser. É tudo muito incrível o que vemos na tela, uma junção de elementos que provam que Andy e Lana Wachowski (que antes era o Larry) , assim como Tom Tykwer, realizaram algo a altura do que já fizeram no cinema. Da belíssima e sensível trilha sonora, dos efeitos visuais e toda a construção de diferentes épocas, fazendo bonito tanto nos cenários do século XX quanto na elaboração de um futuro distante, tendo a todo instante um cuidado com detalhes como locações e figurinos. Conseguem ainda arquitetar cenas memoráveis como o acidente de carro vivido por Halle Berry, num maravilhoso plano sequência, e a cena dos amantes, Whishaw e D'Arcy, arremessando pratos. Vale, claro, destacar a maquiagem, que ao mesmo tempo em que deixa seus atores irreconhecíveis em algumas histórias, peca, por muitas vezes, não ser realista e exagerada, jamais convencendo Jim Sturgess e Hugo Weaving como orientais, mais parecendo alienígenas, e assim, acabam realizando cenas bizarras, mesmo com boas intenções.


Acredito que "Cloud Atlas" teria sido ainda mais potente se não picotasse tanto suas histórias. Há algumas passagens que perdem o foco e a intensidade justamente por serem cortadas em horas indevidas e o problema se torna ainda maior quando, resolvem colocar na sequência de uma grandiosa cena uma história sem a mesma força. É quase que injusto colocar a fraca passagem dos velhinhos de 2012 ao lado da genial e eletrizante sequência futurística de Nova Seul. Claro que isso nem sempre acontece, a maior parte da projeção houve uma preocupação nestas sequências, ou seja, ao mesmo tempo que isso é um de seus maiores defeitos, por vezes, acaba sendo seu grande mérito. Se torna mérito quando a edição insere elementos que contribuem para diversas histórias simultaneamente, seja a trilha sonora que acompanha vários segmentos, fazendo sentido tanto para um quanto para outro, ou algumas narrações em off, que mesmo vindas de um determinado personagem, revelam o mesmo sentimento vindo de uma outra época. E são essas conexões que provam a genialidade da obra.

E todas essas tramas entrelaçadas também não possuem a mesma força. Encontramos a genialidade dos irmãos que um dia realizaram "Matrix" de volta ao nos depararmos com o futuro de Sonmi-451 (Doona Bae), definitivamente, um dos pontos altos de todo o filme. Há beleza em toda a criação daquele mundo, seja pela arquitetura, pelo design inovador, pelo clima e principalmente por suas ideias, sem contar a força desta incrível personagem. Dirigido por Tykwer, o segmento do compositor interpretado por Ben Whishaw é outro momento marcante, tudo é guiado com uma certa delicadeza e sensibilidade, além da complexidade do personagem que de certa forma, cria uma curiosidade acerca desta trama que termina de forma impactante. Por outro lado temos histórias como a do escritor (Jim Broadbent) que vai parar num asilo e com a ajuda de alguns companheiros, tenta fugir de lá. Parece haver um desinteresse enorme da equipe para com esta trama, que surge sempre quebrando o clima, é pequeno demais perto do resto, a impressão que fica é que tentaram usá-la como uma espécie de alívio cômico, mas não funcionou, é tudo caricato e forçado. Enfim, há histórias facilmente esquecidas ao mesmo tempo em que há momentos memoráveis. No entanto, o que acaba sendo muito interessante na diferença de uma trama para outra, é que "Cloud Atlas", por fim, consegue trabalhar todos os gêneros possíveis, da comédia para o romance, de uma aventura épica para um suspense policial, de um drama intenso para uma ficção científica. É então que compreendemos a dificuldade em realizá-lo, em torná-lo algo possível. Por mais que seja nítido as falhas do longa, também é nítido a coragem dos roteiristas e diretores em finalizá-lo. Um filme com inúmeros gêneros, inúmeras histórias, personagens tão distintos interpretados pelos mesmos atores. Tramas complicadas, repletas de ideias e que ainda não segue uma ordem cronológica correta. Há ainda cenas de sexo e nudez, além de uma relação homossexual, chave para todo o resto da trama, que querendo ou não, o torna um projeto ainda mais arriscado. É exatamente isso o que "A Viagem" é, três grandes diretores correndo o risco de por tudo a perder, que não se contentam com pouco e testam na tela todas as possibilidade possíveis. E que bom que tiveram tanta coragem, caso contrário, jamais poderíamos ver algo tão único como este filme. 

A grande sacada de colocar os mesmos atores em tramas diferentes não seria tão interessante caso não fossem escolhidos os atores certos. Tom Hanks, que há muito tempo não se destacava em um longa, retorna demonstrando mais uma vez seu talento, ele, que praticamente aparece em todas as histórias, demonstra uma capacidade imensa em se transformar e surpreende. Halle Berry não tem nenhum grande momento no longa, mas convence em todas suas transformações também. O veterano Jim Broadbent também não desaponta, seja como um velhinho inocente ou como um severo compositor de música. Jim Sturgess sofre um pouco com a maquiagem, mas fez bem seus papéis, assim como Hugh Grant, longe de suas comédias românticas, que infelizmente não tem tanto espaço nas tramas, mas é nítido seu esforço. Hugo Weaving que surge irreconhecível em diversas passagens, tem na maioria, o papel do vilão ou de alguém que pretende mantar a ordem das coisas. Ainda temos o ótimo James D'Arcy e Susan Sarandon. Os destaques ficam para o jovem e talentoso Ben Whishaw e para a atriz coreana Doona Bae, que demonstram sensibilidade diante de seus personagens e emocionam por suas trajetórias. 

"Cloud Atlas" pode incomodar muita gente, muitos já o odeiam e o criticam. De certa forma, até entendo essas opiniões, o filme possui seus defeitos, é confuso e por muitas vezes lento, além de possuir quase três horas de duração. No entanto, aos que ainda não viram, eu realmente espero que sintam o que senti, não o considero uma obra-prima nem a coisa mais inovadora da história, mas confesso que nunca foi tão difícil escrever sobre um filme, até mesmo depois da sessão, simplesmente não conseguia reunir palavras para descrever o que acabara de ver, fiquei dias remoendo o filme na cabeça tentando chegar a uma conclusão. Quando se entra na grande ideia dos Wachowski e Tykwer, talvez esses sejam algum dos sintomas. O filme não entrega respostas nem significados, deixa pontas soltas e momentos que são livres para nossa própria interpretação. Não há certo ou errado quando se trata de "A Viagem". Talvez, quem sabe, seja um filme a frente de seu tempo, que não conseguiu espaço nos tempos de hoje, mas faça mais sentido daqui uns anos. Um filme que me tocou profundamente, seja por sua sensibilidade ou por seus personagens. "Cloud Atlas" é algo que nunca se viu igual, grandioso, inovador, corajoso, visualmente belo e repleto de ideias, de um roteiro inteligente e uma edição dinâmica e muito bem realizada. Um filme raro e memorável. Recomendo.

NOTA: 9



14 comentários:

  1. Meu velho, eu o parabenizo pela coragem de tentar descreve-lo. Pois realmente senti o mesmo que você, quando terminei a sessão. Temi falar qualquer coisa sobre o filme para meus amigos, pais e colegas, pois não queria ser injusto e que não desse a empolgação necessária para que eles assistissem. Só recomendei: "ASSISTAM" e terão uma experiencia totalmente diferente!

    Entretanto, você foi extremamente feliz em conseguir por em palavras um sentimento de confusão e sabedoria indelével e inacreditável. Só tenho a agradecer por me dar a mão, uma tentativa (não diminuindo seu trabalho, mas a obra é tão complexa que realmente é quase imposições, disse quase, descreve-la) de sinopse/enredo/resumo/resenha/descrição do que é este filme!

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  2. Mto obrigado pelo comentário, KoDaRkz! Fiquei feliz em ler suas palavras e fico feliz tbm por ter gostado da resenha!

    Realmente ter escrito sobre "Cloud Atlas" foi algo extremamente difícil, nem mesmo escrever a sinopse das histórias eu consegui! E qndo o filme terminou, eu tbm, diferente de todas as vezes, não conseguia reunir meus pensamentos para argumentar com meus amigos, precisei de um longo tempo para digerir tudo o que tinha visto. Definitivamente, o filme trás uma experiência muito nova e acho que foi por isso que gostei tanto!

    E mais uma vez, eu é que agradeço pelo comentário, são palavras como essas que me incentivam a continuar escrevendo! Valeu.

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  3. Faço das suas palavras as minhas, dá vontade de ver outra vez, para ver se consigo tirar mais alguma coisa.
    Só quero deixar aqui um aparte, a perssonagem sonmi-451 j
    Ja repararam de como eles a articularam?
    De uma simples empregada de mesa, passou a ser um deus num futuro pos apocalitico, e ate sacrificou a vida para transmitir a mensagem.
    E agora eu digo isto nao nos faz lembrar nada? Não vem nada a cabeca?
    Na minha opiniao acho que este filme e daqueles que so se comecam a tirar conclusoes depois de alguns debates entre quem tambem viu o filme. E claro que ficamos sempre com as nossas depois de o ter visto, embora vagas. Acho que se tiram muitos pensamentos da obra,tanto a nivel social, cientifico, moral e ate religioso,sendo que podemos tirar diferentes pensamentos de todos os personagens.Veja-se por exemplo o porque do suicidio do jovem compositor devido a opressao pelas sua orientação sexual, o demonio que aparecia a tentar dissuadir a perssonagem subir a montanha que nao passava nada mais nada menos do que a consciencia dele devido a pensamentos impostos pelo seu meio social,e outras coisas mais enumeras ate que podemos tirar.
    Eu adorei mas so o comecei a adorar passado umas horas, e tenho de o ver outra vez, para mim um filme muito a frente do seu tempo, genial

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    1. Valeu pelo comentário, Francisco!

      Tbm quero poder ver o filme mais uma vez, é daquele tipo que toda vez que se vê, encontraremos um elemento novo, qm sabe até, interpretaremos de forma diferente q da primeira vez.

      Sim, concordo. Mto do que senti ou compreendi de "Cloud Atlas" surgiu em minha mente um tempo depois, a partir de várias conversas sobre ele, além de várias e várias vezes que revisei o filme na minha cabeça.

      Não tinha pensado na personagem Sonmi 451 dessa forma, mas seu pensamento é bastante válido, pode se levar em consideração. E isso é o mais interessante desta obra, poder ser interpretado de diversas formas.

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  4. Vocês simplismente não entenderam o filme.

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    1. Como escrevi na resenha, não há certo ou errado quando se trata de "Cloud Atlas", acredito que cada interpretação seja válida.

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  5. Diferente, inteligente, show de efeitos especiais, filme impecável.

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  6. Ele é tao amplo no pensamento e tao simples no olhar, que se vc nao tiver um cuidado abstrato, ele passará como um filme confuso, com defeitos e fraco, agora meu caro, se você tiver a sensibilidade e sair do plano raso, você terá um grandioso filme em suas mãos.

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  7. CLOUD ATLAS foi para mim deveras uma viagem.
    Um filme complexo com uma reflexiva abordagem nas vidas do ontem, do hoje e do amanha. Um filme inspirador.
    Tive alguma dificuldade para aceitá-lo de principio, mas de tão intrigante que foi o decorrer, acabei por assisti-lo mais vezes somando quatro vezes ao todo e permanecendo ainda insatisfeito.
    Tamanha é a intensidade ao abordar 6 historias interligadas de forma inteligente.

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    1. Sim, se trata de uma obra difícil de digerir. Mas como você disse, se trata de algo inspirador. Vale a pena ver mais vezes.

      Obrigado pelo comentário!

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  8. Acabei de assitir Cloud Atlas. Realmente um filme intrigante. Não sei se é uma obra prima mas com certeza não é um fracasso. Gostei da crítica aqui apresentada, e confesso que dos pontos fracos descritos aqui, não notei nenhum enquanto assistia o filme. Na minha percepção, ao final, consegui interligar todas as tramas. Permita-me discordar do que foi escrito sobre os cortes e sobre os velhinhos fugindo do asilo. Para mim, os cortes permitiram uma maior conexão entre as histórias. Você não era capaz de esquecer uma trama enquanto assistia a outra. O que fica, é a sensação de que o homem está sempre em busca de sua liberdade, de transformar e reformular sua condição, seja na mudança de pensamento em relação aos escravos no sec. XIX, seja na simplicidade de um velhinho fugindo do asilo, seja na luta de uma jornalista tentado quebrar a egemonia de grandes empresas, seja no história de um compositor tentando se libertar da opressão de uma época, seja na grandiosidade de uma mulher lutando contra a escravidão em uma época futurista, ou um homem se desvencilhando de seus preconceitos em um tempo inimaginável... O que fica, é a constante busca por liberdade e autonomia, seja num panorama mundial ou íntimo....

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    1. Concordo com vc, Joy. Os cortes permitem uma maior conexão entre as histórias e acredito que eles fizeram isso de forma magnífica, a edição feita é primorosa, além da conexão, como vc disse, não esquecia de nenhuma trama ao decorrer do filme. No entanto, algumas vezes, senti que perdia o ritmo pois o dinamismo e intensidade não era a mesma de uma história para a outra. Mas foi um erro pequeno perto da genialidade do todo.

      Gostei bastante de seu comentário, concordo com seu olhar e a maneira como viu o filme. Essa ligação que você fez sobre "liberdade e autonomia", confesso que de imediato não percebi muito, mas realmente faz todo o sentido. E esta é a grandeza de 'Cloud Atlas", as interpretações nunca acabam. Valeu mesmo por comentar, muito obrigado!

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  9. Esse filme, além das propostas sobre reencarnação, é uma ode ao amor. Gostei demais.

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